“Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.”
Virginia Woolf escreveu Mrs. Dalloway em 1925. Depois deste trecho, que inicia o romance, mais de 200 páginas se passam. O que parecia inexplicável, na época, é como essas +200 páginas poderiam tratar, todas elas, de um espaço de tempo menor de 24h. Como seria possível que tantas e tantas palavras pudessem abarcar apenas o curto período de um dia, desde a saída da protagonista para comprar flores e preparar sua festa até o encerramento do dia? Um romance não precisa ser mais do que isso?
Acontece que o tempo na literatura pode acontecer de diversas maneiras diferentes, de acordo com o que o/a autor/a pretende construir ali. Pode passar rápido ou devagar, voltar para anos passados, adentrar-se no futuro, nas hipóteses, nas possibilidades e mesmo no impossível. Mas nem sempre foi assim.
O que muda a literatura?
A literatura foi e continua sendo formada pelos contextos, compreensões e necessidades do mundo, mesmo que interpretadas de forma subjetiva pelos seus autores. Ela é formada, portanto, por uma série de transformações e rupturas, que explicam coisas que vão muito mais além do que o modelo das linhas do tempo históricas que aprendemos na escola.
Esta nova noção de temporalidade, trabalhada por Virginia Woolf, James Joyce, William Faulkner e vários outros autores em maioria europeus, faz parte da estruturação do Romance Moderno, que acontece no final do século XIX e se estende pela primeira metade do século XX. O público, na época, estranhou as mudanças e demorou a aceitar e entender aquela proposta. Isso não é novidade, né? Quando o público está acostumado a um tipo de arte, é difícil sacar as mudanças, mesmo que elas a princípio não pareçam muito evidentes. A rejeição é grande e as críticas são muitas. Acho que faz parte do processo. Em seus diários, a própria Virginia Woolf disse que “talvez a plena beleza de escrever nunca se revele aos contemporâneos”.
Mas o que diabos mudou?
O teórico Anatol Rosenfeld, em um de seus textos, afirmou sobre o romance moderno: os relógios foram destruídos. A metáfora já diz muito!
As noções de tempo e também de espaço passam, nesse período, por uma mudança. Essa mudança vem não só de novos artifícios literários, mas também do que se entendia e questionava no mundo. Uma coisa sempre tem traços da outra, pois quem escreve a literatura está no mundo: observa, participa, se posiciona.
Essas duas grandezas / unidades de medida, que tanto se interseccionam na arte e na vida, deixam de ser compreendidas como formas absolutas e objetivas, e passam a ser mais um elemento para a construção do mundo literário ali posto. São finalmente encaradas como as formas relativas e subjetivas que podem potencialmente se tornar, tanto na literatura quanto na vida. Dá-se lugar para uma nova forma de compreender o sujeito que é personagem, mas que é também indício das mudanças da compreensão humana no mundo real.
Os dias podem se passar em horas, as horas podem se passar em dias, e assim o tempo da literatura se aproxima muito também da filosofia. As cronologias podem se inverter e retorcer. Também os autores recorrem e aprofundam técnicas como a do fluxo de consciência, que traz à tona os pensamentos e sentimentos dos personagens. Sem máscaras. Se formos parar pra pensar (ops), nossos pensamentos e sentimentos não se organizam sempre de forma linear e concisa. Pensamos uma coisa, que se associa à outra, que nos lembra de tais e tais preocupações, anseios, reflexões vão e voltam, fazem curvas e loopings porque, afinal de contas, pensar não é tão fácil e direto assim. Coisa parecida acontece no romance moderno e pode se estender inclusive sobre quem achávamos que, a princípio, seria um poço de lógica e linearidade: o narrador. O narrador é participante ativo de tudo isso – mas esse assunto a gente continua outro dia.
E os tantos outros livros que não são desse jeito?
Entender os processos que alteram a forma de contar histórias nos ajuda a entender os mecanismos da construção do texto. Isso tudo não significa que um jeito de expressar o tempo (ou qualquer outra parte da narrativa) seja melhor do que outro. Todos são possíveis e cumprem aquilo que se propõem. O importante é entender os contextos que levaram cada um deles a nascer e se estruturar dessas formas. A história da literatura diz muito sobre a história da humanidade, e não precisa ser tão quadradinha quanto a forma que vemos na escola!
E como o tempo é estruturado nos livros de hoje em dia?
Essa pergunta eu deixo para vocês. Vamos investigar?
Helena tem 20 anos e mora em São Paulo. É estudante de Letras, comunicadora, ilustradora, escritora e militante feminista. Na Capitolina, coordena a coluna de Literatura. Gosta de ver caixas de fotografias antigas e de fazer bolos de aniversário fora de época. Não gosta de chuva, nem de balada e nem do Michel Temer (ugh).