Atenção: esse texto possui leves spoilers.
Eu não vejo distinção entre Marvel e DC, pois sou da opinião de que ambos estúdios possuem personagens fortes e dignos de admiração. Porém, meu super-herói favorito sempre foi o Homem-Aranha (por motivos bem pessoais e específicos), então eu naturalmente tendo a defender a Marvel com um pouco mais de afinco.
Desde que fui atingida pelo ~raio empoderador~, entretanto, ficou muito difícil ser fã da Marvel e não é preciso ir muito longe pra entender o porquê, basta apenas ver o estúdio fazer aquele desvio quando o assunto são perguntas simples como “e os brinquedos da Viúva Negra?” Nesse sentido, a DC sempre esteve um passo à frente da Marvel, tanto com o novo discurso da Batgirl como com um manual de empoderamento para pequenas meninas.
Felizmente, no final de dezembro de 2014, ainda sob o nome de A.K.A. Jessica Jones, a Marvel anunciou que uma série sobre a heroína seria produzida e lançada pelo serviço de streaming da Netflix, ainda sem uma data certa. A série perdeu o “A.K.A.” e foi lançada no último dia 20 de novembro sob o nome de Marvel’s Jessica Jones.
Essa série é tudo que você poderia querer de girl power…
A história que conhecemos de Jessica começa em um ponto de sua vida onde ela já teve uma carreira de heroína que durou super pouco, e agora sua vida é a Alias Investigations, uma empresa que ela abriu como detetive particular. Sua melhor amiga é Trish Walker, uma radialista que já foi uma estrela infantil super famosa. A maior parte de seus trabalhos são feitos para Jeri Hogarth, uma poderosa (e ardilosíssima) advogada que está se divorciando de Wendy, uma médica super respeitada. Por fim, o caso principal que é a cola e o estopim para toda a temporada é o de Hope Shlottman, uma estudante desaparecida e que mais tarde é acusada de assassinato e depende de Jessica para sair da prisão.
Percebeu alguma coisa? Não, você não leu errado. As principais personagens da história e as que fazem a história acontecer são, isso mesmo, TODAS mulheres. E não são quaisquer mulheres: são mulheres que estão fazendo acontecer, mulheres que têm objetivos bem claros e que saem em busca disso, e especialmente, são mulheres que não precisam de cara nenhum.
“Isso quer dizer que não existe romance hétero na série, Duds?” Muito pelo contrário. Tem e tem romance bem intenso – a cama de Luke que o diga! –, mas além dele não ser o foco principal da série e existir com o único propósito de enriquecer a história e não desviá-la do seu enredo, as personagens fazem questão de lembrar que quem toma as decisões aqui são elas.
… e mais um pouco!
E QUE ENREDO, amigas. Esqueça toda a ação e extrema pancadaria sensorial que presenciamos em Demolidor. Esqueça as complexidades de Agents of S.H.I.E.L.D. Esqueça até mesmo o elegante bad-ass vintage que é Agent Carter. O carro-chefe da série criada por Melissa Rosenberg (The O.C., Dexter) é relacionamentos abusivos.
O jeito explícito, pesado e psicológico como a personagem de Jessica lida com o fato de ter passado pelo que deve ser o relacionamento mais abusivo já registrado, foi tão perfeitamente colocado que merecia um trigger warning no começo de cada capítulo. Cada declaração gritada vinha como um alívio – para mim, e para Jessica –, e me faziam pausar o episódio para dar aquela respirada. A interpretação sempre inexpressiva, sarcástica e durona de Krysten Ritter (Breaking Bad, Don’t trust the B.., Veronica Mars), que causou desconforto a uns, é bem explicada conforme vamos conhecendo sua história mais a fundo, e, ao final de 13 episódios, consegue nos convencer absolutamente de que Jessica é seu papel de ouro.
O vilão Kilgrave, um supervilão (nos quadrinhos conhecido como Homem-Púrpura) com poderes de controle da mente, é interpretado brilhantemente por David Tennant (Harry Potter, Doctor Who), e talvez um pouco demais. O vilão nos dá arrepios nas horas certas, parece estar absoluta e assustadoramente convencido de que tudo que ele faz é certo, é por amor, e vale a pena no final. O típico abusador.
Um personagem como Kilgrave em uma série tão importante que vai atingir tantas pessoas dentro de um universo cinematográfico e televisivo que está em constante expansão (e, atualmente, bem em alta) serve para fazer um alerta sobre o mundo que vivemos desde sempre, mas que tem sido “desmascarado” aos pouquinhos.
Falar sobre relacionamentos abusivos, estupro, aborto e casamentos homoafetivos foi uma aposta relativamente arriscada da Netflix, e que deu muito certo, ainda que certos estereótipos tenham sido mantidos (como o fato de Jeri ter um comportamento que por muitas foi considerado uma projeção do homem no relacionamento lésbico). É importante que esse tipo de assunto esteja presente na cultura pop para nos lembrar que ainda há muito o que aprender e há muito o que ensinar.
A romantização do abusador e o discurso da vítima
Como nem tudo são flores, a série serviu para que víssemos o quão perigoso pode ser esse tipo de abordagem. Conversando com uma das meninas aqui da Capitolina e até mesmo vendo coisas pelas redes sociais mais “libertinas” como Twitter e Tumblr, podemos ver uma romantização do personagem Kilgrave. Pode-se até dizer que a escolha de David Tennant para o papel tenha incentivado isso, já que o ator britânico é super simpático. “Como assim o David interpreta o vilão? Deve ter alguma coisa boa nesse personagem!”, “Mas não dá pra ver que ela até gosta em alguns momentos?” e “Coitado, ele ama tanto ela…” foram coisas que eu mesma li por aí. É super importante saber fazer esse tipo de abordagem de modo a deixar bem claro que não importa o quanto a pessoa possa parecer simpática e apaixonada, um relacionamento abusivo é doentio, perigoso e deve ser interrompido, sempre.
Para finalizar, se até agora eu não havia te convencido a assistir a Jessica Jones, é importante dizer que a série é um grito de alívio e liberdade para aquelas meninas que precisam de uma força a mais depois de terem passado por um relacionamento abusivo: o discurso de “não é minha culpa” e “não é sua culpa” é amplamente abordado, o que faz com que as personagens saiam ainda poderosas de toda aquela história, e assumindo o controle de suas próprias vidas. As personagens são inspiradoras, suas histórias são pesadas, e a resolução de cada uma delas é precisa na medida do possível, e sempre com decisões que partiram delas e apenas delas.
Duds Saldanha Rosa, 22 anos, bitch with wi-fi, so indie rock is almost an art. Não sou parente nem do Samuel Rosa, nem do Noel Rosa, nem do Carlos Saldanha, mas gostaria de ser. Sou paulista-paraibana, designer, ilustradora e seriadora avídua. Faço yôga para aquecer minha mente e escrevo no Indiretas do Bem para aquecer meu coração. Doutora em ciências ocultas, filosofia dogmática, alquimia charlatônica, biologia dogmática e astrologia eletrônica. Cuidado: femininja e aquário com ascendente em virgem. Você foi avisado.