Historinha 1: Outro dia, conversávamos no trabalho sobre uma aula de sociologia em que o professor perguntou à turma quem se considerava negro e poucos levantaram a mão. Basicamente só se consideraram negros aqueles de pele bem escura, enquanto os mais claros, embora não se vissem como brancos, também não se viam como negros – se diziam morenos ou variações do tipo. Os professores presentes na conversa sobre isso ficaram impressionados. Quando falei para eles que isso não me espantava e que eu só passei a me entender como negra há poucos anos, todos deram de rir. Para eles, era óbvio que eu sou negra.
Historinha 2: Quando a Capitolina tinha uma semaninha de vida, li um comentário na internet de uma pessoa com uma crítica (muito válida) de que a nossa revista tentava ser inclusiva e representativa, mas, até aquele momento, não tinha nenhuma negra dentre as colaboradoras. Para essa leitora, era óbvio que eu não sou negra.
Aqui estamos falando sobre um tipo específico de racismo: discriminação contra pessoas negras. Mas quem são essas pessoas?
O que acontece é que, embora sejamos todos a mesma raça humana, resolveram dividir biótipos como se fossem raças também. E aí, a gente aprende que branco é uma coisa, índio é outra, negro é outra e por aí vai, esquecendo que somos todos poeira estelar e que essas divisões são ridículas e só servem para estimular essas segregações e, assim, a tal da discriminação.
Em vários países, que não o Brasil, as chamadas raças baseadas em biótipos não se misturam tanto (em outras palavras: tem bem menos gente filho/a de biótipos diferentes) e, por isso, lá fora são lidos como negros, pessoas com traços físicos específicos. Esses traços têm a ver tanto com a cor da pele quanto com o formato do nariz, os lábios mais grossos, o cabelo crespo etc. No Brasil, a coisa funciona um pouco diferente. Você já deve ter ouvido por aí a declaração hipócrita de que “no Brasil não tem racismo”. Normalmente, as pessoas justificam isso dizendo que, no nosso país, não tem por que ter racismo, porque há muita miscigenação (a tal mistura que falei ali em cima). Isso é uma grande bobagem, porque, pelo que observo, a única diferença do racismo contra negros no Brasil em relação a outros países é que aqui ser negro é (principalmente) uma questão de cor – passando também pela classe social, mas não vou entrar nesse aspecto neste texto.
Vou explicar: aqui, temos o costume de considerar negros apenas aqueles que têm a pele mais escura e não reparamos muito em outros traços físicos. Sendo assim, muitas pessoas que, por definição, são negras ou seriam consideradas negras em qualquer outro lugar, aqui no Brasil, não se veem dessa maneira, nem sofrem preconceito quando saem na rua. É mais ou menos o meu caso. Meu pai é negro e minha mãe é uma mistureba só (pele mais clara que a minha e traços misturados). Mamãe nunca sofreu nenhum tipo de racismo, mas, em outros países, é vista como negra. Eu, como comecei a contar ali em cima, às vezes sou lida como negra, às vezes não.
Minha primeira experiência como negra veio já com vinte e poucos anos, quando comecei a namorar um rapaz muito branco cuja família me considerava “a namorada negra do Fulano”. Nunca sofri nenhum tipo de tratamento diferenciado da parte deles, mas eles me viam como negra e eu nunca tinha passado por isso. Na verdade, alguns anos antes, foi quando refleti sobre isso pela primeira vez. Na época do vestibular, tive que marcar a minha etnia e “morena” não era uma das opções. Pois é, assim como os alunos da primeira historinha, cresci achando que eu era “morena” e precisei do vestibular pra sacar que “moreno” não é um biótipo.
Foi mais ou menos por aí que, muito lentamente, comecei a questionar por que eu e tantos outros de traços semelhantes aos meus crescemos nos dizendo “morenos” e percebi que a própria existência (e insistência) do termo é uma forma de racismo. Como a gente aprende que ser negro não é legal, a gente aprende também a não se dizer negro e fica saindo pela tangente, dizendo que é branca, morena, ou não dizendo nada.
Acabou que, no vestibular, marquei “pardo”, porque assim me orientaram. Até hoje não entendi muito bem o que é “pardo”. Perguntei por aí e as pessoas me disseram que pardo é o que não é branco, não é negro, não é índio, não é asiático… Pode se referir a uma mistura dessas coisas. Na mesma conversa da Historinha 1 ali de cima, o professor de sociologia me disse que eu podia e devia ter me marcado como negra no vestibular. Contando essa história pra outra pessoa, ouvi que não, eu tenho olhos claros, então, eu não sou negra. Muita gente acha que meus olhos claros vêm da família da minha mãe, já que ela tem a pele clara. Não sabem que, na família do meu pai, tem um monte de pessoas negras de olhos verdes, assim como os meus, enquanto, na família de mamãe, tenho alguns parentes distantes de olhos azuis. Então, sei lá se meus olhos vieram da família do pai ou da mãe, mas sou muito mais parecida com o lado do pai e lá tem muito mais olho claro. Bobagem dizer que olhos claros são coisa de branco.
Outro dia, estava lendo uma matéria sobre a dificuldade que mulheres negras sentem em encontrar maquiagem no Brasil. Você pode achar essa uma reclamação boba, porque é só maquiagem e há problemas muito mais sérios no mundo, mas é aí que tá: como assim um país onde a maioria é negra ou miscigenada não tem nem maquiagem de acordo com a cor da pele de seus habitantes? Isso é sim uma forma de racismo. Eu não tenho esse problema. Descobri que sou bege médio para o mundo dos cosméticos e sou feliz com meu corretivo. Mas aí, então, eu não sou negra? O foco na cor da pele é o que me permitiria fugir da classificação de negra e que me fez crescer a vida inteira me achando “morena”.
Na prática, o que acontece é que eu, por ser uma negra de pele clara o suficiente para só ser lida como negra em alguns meios, estou numa posição privilegiada no Brasil, pois não costumo sofrer racismo como meu pai e pessoas de pele mais escura sofrem. Não costumo enfrentar as dificuldades que pessoas negras de pele escura enfrentam diariamente. E é o próprio fato de que eu e outras pessoas negras de pele mais clara aprendemos que somos “morenas” que nos faz ver negros como “os outros”. É como se ser negro fosse um problema que ninguém quer ter e, se temos a pele um pouco mais clara, ufa, temos uma alternativa, podemos dizer que não somos negros e nos livramos de todos os problemas. É uma postura hipócrita e escapista, porque reforça a separação e, mais uma vez, faz com que os problemas que os negros enfrentam sejam problemas “dos outros”.
Mamãe conta que a avó dela dizia que “escapou de branco, preto é”. Acho que pensarmos dessa maneira é, de certa forma, um meio de combater o racismo. Porque o que mais tem por aí é gente racista que também é negra e nem sabe que é ou simplesmente não quer se ver assim. O silêncio em relação a declarar-se negro perpetua a discriminação já existente na nossa sociedade, porque põe o problema pra debaixo do tapete e nos distancia dele. Esse distanciamento acaba nos fazendo crer, erroneamente, que o racismo não existe, não nos afeta ou não é algo que nos diga respeito. E é assim que a questão não é discutida nem combatida. Quando somos negros e optamos por nos dizer “morenos”, “escurinhos”, “queimados de sol”, “bronzeados”, “da cor do pecado” (!) e variações do tipo, estamos negando nossa própria identidade e nos isentando da questão racial, que é sim um problema no nosso país. Somos parte do grupo oprimido (lembrando da definição do Aurélio) e estamos escolhendo, de maneira consciente ou não, ir pro lado do opressor. Devemos nos questionar por que essa atitude é tão comum, por que nos sentimos mais confortáveis nos declarando “morenos” do que “negros”.
De uns tempos pra cá, passei a me assumir como negra. Alguns olham espantados, não sei se por não me verem como negra ou se simplesmente porque as pessoas não costumam se declarar assim. Eu nunca vou saber o que é sofrer racismo de verdade, porque, como disse, nem todo mundo me vê como negra, então, não costumo sofrer racismo, mas essa luta me diz respeito também. Não é porque dei “a sorte” de ter uma cor de pele privilegiada na sociedade que a discriminação racial não é problema meu. Qualquer tipo de discriminação – seja de raça, classe social, orientação sexual ou o que for – é um problema de todos nós. Uma sociedade que segrega e exclui uns e dá preferência a outros é prejudicial a todos, pois prega desigualdade e hierarquias. Ninguém é melhor do que ninguém. E, só para frisar, ninguém é pior do que ninguém.
Fazer parte de um grupo privilegiado na sociedade não nos dá o direito de ignorar o problema. Eu não preciso ser o segurança do estabelecimento que olha torto pra negra que entrou e pede que ela se retire pra ser responsável por essa discriminação que ela sofre. Se eu ignoro a existência do racismo na sociedade, eu sou parte dele. O que podemos fazer é nos aliar àqueles que sofrem essas discriminações, ouvirmos suas dificuldades, respeitar essas dificuldades, aprendermos com essas pessoas e ajudá-las a combater esses discursos e essas práticas de ódio. Silenciar a questão nunca é combatê-la: ignorar é reforçar. Desse modo, se nos calamos, estamos contribuindo para o problema. Não nos calemos mais.
Usa seu vício em séries e Facebook como inspiração para os textos, para a vida e para puxar assunto com os outros. Adora ouvir histórias e conversar sobre gênero, sexualidade, amor e relações amorosas – gosta tanto desses temas que deu até um jeito de fazer mestrado nisso. É professora de inglês, cantora e pianista amadora de YouTube, fala muito, ri de tudo e escreve porque precisa. Ama: pessoas e queijo. Detesta: que gritem.
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