“Tudo o que é bom e justo emana de um único Deus, que hoje pode ter muitos nomes e cultos. Mas, seus princípios foram antes cultuados por um único povo; primordial e resistente, criado à sua imagem e semelhança. São esses fatos que nos fazem ter tanta dificuldade em entender a intolerância, o preconceito e a violência praticados em nome de Deus, contra os religiosos do Candomblé e da Umbanda ou de qualquer outra religião. A religiosidade africana é a prática de uma doutrina baseada em valores de paz, justiça, amor fraterno e sacralização da vida.”
– Babalaô Ivanir dos Santos
Quando pensamos em música e dança como formas de manifestação da cultura e religiosidade negra, imediatamente pode nos vir à mente imagens de orixás, ou essa ideia pode nos remeter a terreiros. Em parte, essa associação está certa. No entanto, é importante destacar que louvores e religiosidade africana podem ir para além do terreiro e danças de orixás. Ainda assim, nesse texto destacaremos duas manifestações religiosas popularmente brasileiras: o Congado e a Festa para Iemanjá; a primeira, típica do estado mineiro, trata-se de um grande festejo considerado patrimônio imaterial pela UNESCO; a segunda, uma grande oferenda à mãe dos orixás no culto da Umbanda, que ocorre na cidade de Salvador, na praia do Rio Vermelho, e é um grande símbolo da cultura popular da cidade.
FESTA DE IEMANJÁ: RAINHA DAS ÁGUAS E MÃE DE TODOS OS SANTOS
Tradicionalmente no dia 31 de dezembro, em praias de todo o Brasil, vemos pessoas fazendo oferendas à Iemanjá e demais orixás, mas existe outra data exclusiva para homenagear a mãe das águas, que em Salvador é no dia 2 de fevereiro, conhecido também como o dia oficial de Iemanjá. Em Salvador, essa data é comemorada desde 1920, quando uma colônia de pescadores do Rio Vermelho, durante um ano de baixa pescaria, buscou ajuda de mães de santo e assim, resolveram cultuar santos africanos trazidos para a Bahia pelos escravos. Durante esse processo foi elaborada uma lista dos materiais que seriam utilizados como oferendas aos santos africanos. No início, a festa se chamava “Presentes da Mãe d’Água”, e apenas a partir de 1960 é que se tornou a “Festa de Iemanjá”, que hoje faz parte do calendário oficial de comemorações de Salvador.
Durante a celebração e festa na praia, os filhos de santo incorporam orixás, que passam também a integrar a festa com danças, cantos e todas as suas energias. As comunidades de Candomblé e Umbanda vão às ruas prestigiar a grande celebração; os Babalorixás (pais de santo) e Ialorixás (mães de santo) participam de forma fervorosa, com seus adereços e vestimentas de acordo com a cor de cada um dos orixás. As manifestações culturais durante a Festa de Iemanjá também ganham espaço com grupos de capoeira e grupos carnavalescos, que chamam brincantes às ruas para festejar e celebrar sua fé, em uma atmosfera de paz e proteção espiritual.
Na época da escravidão, os escravos negros trazidos da África não podiam fazer cultos aos seus orixás, o que fez com que eles tivessem que associá-los aos santos do Catolicismo, que naquele período era a única religião permitida. Sendo assim, alguns dos santos que conhecemos hoje nas religiões podem ser reconhecidos como orixás também, já que foram sincretizados. Temos, por exemplo, Oxalá, que é o Senhor do Bonfim; Omolu é São Lázaro; Ogum representa Santo Antônio, Oxóssi como São Jorge, Ibeji é São Cosme e Damião, e Iemanjá se sincretiza como Nossa Senhora da Conceição. Dessa forma, a fé das religiões de matriz africana continuou resistindo e resiste até hoje: ainda que tentem silenciá-las, o toque de seus tambores resiste alto e forte.
O CONGADO: MÚSICA, LOUVOR E RESISTÊNCIA
Uma das mais importantes manifestações da herança cultural afro-brasileira no estado de Minas Gerais é o Congado. Tal celebração religiosa sincrética mescla tradições africanas com elementos indígenas e representações populares portuguesas.
As celebrações do Congado, que remetem às coroações dos reis africanos, expressam a sobrevivência da religiosidade africana através da reinterpretação das formas de culto impostas pelos colonizadores, unindo as memórias das devoções tribais com os valores impostos da devoção católica. A dança e a música remetem à coroação do Rei do Congo e da Rainha Ginga de Angola, com a presença da corte e de seus vassalos. No Congado, a música ocupa um importante papel, dando forma ao ritual. Com o propósito de servir de ligação entre o mundo físico e o mundo sagrado, a música tem a função de expressar a fé, a cultura e a vida do congadeiro.
A musicalidade de cada terno (nome dado aos grupos de Congado) tem características específicas, com variações sonoras e rítmicas de acordo com cada região. A aprendizagem musical nos ternos se dá de forma diferente do ensino institucionalizado, essencialmente pela interação dos integrantes, tornando, assim, cada terno único em relação à sua musicalidade. A aprendizagem se dá pela prática, observação, imitação e pela transmissão oral.
No Congado, existem dois tipos de músicos: os instrumentistas e os cantadores. Os cantadores são regidos pelo Capitão-Mor, que é quem inicia a cantiga, que pode ser do repertório do terno ou um improviso. Várias são as temáticas apresentadas nas cantigas dos congadeiros: a escravidão e sua abolição, desigualdades sociais, a luta diária do negro, a história do terno e da cidade, milagres realizados pelos santos, a devoção e a fé. Os principais sons da Congada vêm dos instrumentos de percussão, entre eles as caixas, xique-xiques, pandeiros, cuícas e reco-recos. Alguns ternos fazem uso de violões, violas, sanfonas ou acordeons, mas os sons desses geralmente permanecem em segundo plano.
Os instrumentistas mais importantes para a Congada são os caixeiros (que tocam caixa), pois são eles que determinam a base rítmica a ser acompanhada pelos outros instrumentistas. A caixa é um tambor feito de madeira ou metal recoberto de membranas em ambas as extremidades. As reuniões em torno da dança e da música sempre representaram importantes contextos de interação social para os negros no Brasil colônia, criando afinidades entre povos que, apesar de diferentes origens, uniram-se em razão de sua condição de cativeiro. A tradição musical dos povos negros foi ressignificada, mas ainda tem importante papel histórico e social.
O Congado enfrentou e ainda enfrenta desafios, sendo necessária sua constante atualização, para a sua sobrevivência e transmissão da expressão de fé. O Congado das Minas Gerais resiste, apesar da intolerância e da incompreensão da importância histórica e social dessa celebração.
Fabiana Pinto, negra e carioca. Graduanda em Nutrição na Universidade Federal do Rio de Janeiro em tempo integral e, escritora de suas percepções e experimentações do mundo em seu tempo livre.
Nascida e criada em Belo Horizonte - MG, é psicóloga e trabalha com pessoas em situação de risco e violação de direitos há quase 10 anos. Mulher negra, só descobriu a força de identificar-se como tal há pouco tempo, pois cresceu acreditando que era "moreninha". Tem duas gatas e um cachorro, mas queria ter 30 de cada. Tem vontade de comer sorvete todo dia (menos de manga) e faz crochê pra relaxar.