Minhas idas com minha mãe ao supermercado quando criança eram marcadas por um episódio que sempre se repetia: eu escolhendo um shampoo de liso extremo com a esperança que minha fibra afinasse. Por mais que minha mãe soubesse que aquilo não aconteceria, ela sempre comprava porque sabia que eu ficaria frustrada caso a realidade me fosse escancarada.
Meu fio não ficaria liso. Eu não teria nunca o cabelo escorrido igual minhas primas tinham. Eram o trunfo da família, sabe? Passei a infância inteira ouvindo o quão maleável e brilhoso eram aqueles cabelos. Inconscientemente, me vi desejando aquilo tudo para mim. Pobre, pequena Maria! Se já não bastasse a dor de ter meu gênero negado, absorvi que minha raça, meu cabelo “volumoso” (Eufemismo barato para não dizer crespo) nunca seria tão bonito quanto os fios até o fim das costas como as mulheres da família tinham.
Alisei meu cabelo bem jovem. Ainda lembro da sensação preenchedora de finalmente ter o cabelo estirado. Foi logo no início de quando me assumi, então minha construção enquanto mulher sempre andou de mãos dadas com minha relação com meu cabelo. Me submeti a viver 4 anos com cabelo alisado. O sentimento de preenchimento não durou três meses. A raiz aparecia! Ela sempre aparecia e me lembrava que eu cravava uma batalha contra mim mesma. Eu negava meu eu, minhas raízes, o que me construía enquanto negra. Em um acampamento que fui aconteceu o estopim. Não aguentei ao ver outras mulheres negras e todas elas com cabelos crespos e cacheados sendo mostrados quase sempre com um sorriso no rosto. Coisas que até o momento, eu não o tinha. Eu não via felicidade em ser negra, eu absorvi que características me faziam menos do que os outros. Porém não, eu não poderia pensar dessa forma mais. Eu precisava ter orgulho da minha pele e parar correr do sol. Eu precisar ter orgulho do meu nariz e parar de afina-lo em edições. Eu precisava ter orgulho DO MEU CABELO e parar de alisa-lo.
Comecei um longo e doloroso processo de aceitar a ideia que eu precisaria me desfazer de um cabelo que batalhei tanto para ter. 2 anos crescendo, mas o que viria a seguir seria de uma imensidade que eu nunca imaginei. Hoje, quando passo uma vista por tudo que vivi nessa transição capilar e o que vivo agora, ao quase fim dela, não tenho dúvidas que foi uma das melhores decisões que fiz em relação a meu bem estar.
Hoje, estou tão segura em relação à minha raça, meus traços, meu fio. Hoje, eu recebo tantos elogios por ter me empoderado e ter construído minha identidade enquanto mulher trans negra. O sorriso no rosto finalmente veio, a felicidade decorrente a aceitação que tive comigo mesma é tão preenchedora. E sei que ela não irá se extinguir com 3 meses, pelo contrário, ela aumentará. Na mesma proporção que meus fios crescem e fazem volume. Afinal, se a música tá boa, aumenta o volume!
Futura pedagoga e feminista que transversaliza as questões de gênero e raça. Meu nome se tornou uma alusão à minha transparência em relação aos meus sentimentos. Pisciana, sinto como se eu fosse um mar misterioso e difícil de se velejar.
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