Os humanos descobriram (ou inventaram) a música há tempo pra caramba. Fico imaginando um Neanderthal ou um Homo Sapiens ouvindo um passarinho ou prestando atenção ao ritmo dos passos e das batidas do coração. Dizem que foi imitando esses sons que criou-se um novo meio de comunicação. Digo “meio de comunicação” porque naquela época servia muito mais pra isso do que pra arte ou diversão. Lembram o Etevaldo, personagem do Castelo-Rá-Tim Bum, fazendo seu primeiro contato com a raça humana através de sons? É bem esse o espírito da coisa.
Fato é que música é um negócio tão intrínseco à nossa história que é difícil falar de tempo sem falar de música. E vice-versa. E, olha, não é só esse tempo histórico dos milênios e dos séculos que tem a ver com nosso assunto. Se a gente pensar um teco, vai encontrar um número surpreendente de microrreleações que costuram som e tempo.
Ondas sonoras e física
Começando bem do comecinho: uma onda sonora nada mais é que um pulso energético que se propaga no espaço com velocidade definida. Tá, aonde eu quero chegar com isso? Bem, velocidade é a distância percorrida em um determinado tempo. Hein, hein, sacaram? O que eu quis dizer é que a onda, “matéria-prima” do som (que, por sua vez, é matéria-prima da música), só existe se existir tempo. Nós nem chegamos a cogitar um mundo sem tempo, mas, bem, é uma possibilidade em um mundo paralelo. Um mundo em que provavelmente não haveria música como a conhecemos. Eu sei que parece muito viajandão, mas assim é a Física, gafanhota.
Inovação, metrônomo e pop
Além da onda sonora, várias inovações importantíssimas na música também são obra do tempo. Exemplo disso é o icônico balé A Sagração da Primavera, apresentado em 1913 por seu compositor (e affair de Coco Chanel, não resisto à fofoquinha), o russo Igor Stravinsky. Sua estreia gerou um auê na audiência. Era gente saindo, gente vaiando, gente berrando tão alto que precisaram ficar gritando da coxia o tempo da música para os dançarinos conseguirem dançar em sincronia. Tem até cena de filme que reproduz este momento bizarro. Mas, tá, foco. Depois disso tudo, uma verdadeira revolução aconteceu na música. Alguns compositores realmente gostaram do que ouviram e também passaram a usar novas estruturas rítmicas, mais duras nos ouvidos e mais complexas na confecção. Repare que eu disse “estruturas rítmicas”, e ritmo é irmãozinho do tempo. Ou seja, uma mudança relativa ao tempo rendeu caminhos musicais completamente novos.
Quase o avesso disso é a música pop, que tem uma estrutura simplérrima. Muito provavelmente qualquer canção pop que toque em rádios grandes vai obedecer à contagem 4/4 do metrônomo, que é tipo um relógio para medir o andamento musical. Faça o teste: enquanto ouve uma música, tente contar até quatro com um intervalo regular e vá repetindo até o fim da música (ou até onde aguentar). Se a contagem coincidir com o ritmo, parabéns, é um caso clássico de pop! O que sempre achei complicado é quando uma canção tem seu valor diminuído por causa disso. Mas aí chega Tom Zé, artista que muito respeito e admiro, e diz o seguinte em “Chamegá”:
“Aí chegou o gringo com
o sequencer para prender
o músico brasileiro na camisa de força do metronímico 4/4 rock-pop-box.”
Dá um nó terrível na cabeça. Porque, de fato, o 4/4 é bem limitante e pode podar a criatividade, prender o músico numa caixinha confortável. Concordo com o Tom (eu, já íntima) também quando ele fala que a riqueza da música regional e popular acabam sendo perdidas nessa história. A identidade acaba indo pro espaço e acaba-se cedendo a uma cultura imperialista, o que é bem triste.
Mas também não posso deixar de considerar que amo música pop, e não deveria me sentir mal por isso. Não dá pra escolher o que a gente gosta. O importante é saber diferenciar o que a gente realmente curte e o que a gente engole porque é fácil, docinho e está sendo dado de colher na nossa boca — o que acontece muitas vezes com as canções 4/4. No nosso repertório pessoal tem espaço pra tudo: 4/4, 7/8, e a turma toda dos medidos e desmedidos!
E, olha, pop pode ser bem profundo. Uma dupla machistona americana, o 3OH!3, fez há alguns anos um poperô eletrônico frenético sobre como eles fazem fiu-fiu pras garotas que passam de blusa transparente e pernas de fora. Mas a versão da Marina and The Diamonds soou completamente diferente. Em um tempo bem mais lento, os versos entoados por uma mulher soaram profundos e críticos aos homens desrespeitosos. É o andamento temporal (e, nesse caso a intérprete também) subvertendo o significado de uma música.
Identidade
Assim como o tempo pode dar identidade a uma música, a música é parte da identidade de um tempo. Calma, eu explico: alguns tipos de sonoridade fazem mais sentido com faixas de duração mais longa ou mais curta. O rock psicodélico, por exemplo, combina com algo mais prolongado, que permita uma viagem astral de qualidade. Já o punk é mais direto e reto, e suas mensagens curtas e grossas são dadas em, no máximo, três minutinhos, por aí.
Tomando os mesmos exemplos, a psicodelia acabou por ser um gênero bem característico das década de 1960 e 1970, enquanto o punk remete às décadas de 1970 e 1980. Não que eles tenham parado por aí! Ainda tem muita banda psicodélica e punk na ativa. Mas tem traços que evocam inevitavelmente uma época. Sintetizadores? Anos 1980. Psy trance? Anos 1990 e 2000. Lira? Grécia Antiga (tá, essa não é tão óbvia). E por aí segue o bonde.
As pontes entre som e tempo parecem não ter fim. E, no final do dia, o que torna a música perene, o que a faz atravessar os séculos sob as mais variadas formas, mas sem um arranhão sequer, somos nós. Literalmente. Temos laços de sangue com a musicalidade. Nossa voz, nossas palmas, nossos passos, a batida do nosso coração: nós não só criamos a música, nós somos música. Licença poética para ser brega, por favor: enquanto existirmos, a música reside ilesa ao tempo dentro de nós. Seja ela pop, clássica; seja Tom Zé, Kelly Key; seja The Shaggs (algum fã de Shaggs por aqui?), Suzana Vieira (pode, sim). Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! E viva a música também, né. E o tempo, e tudo mais.
Julia Oliveira, atende por Juia, tem 22 anos e se mete em muitas coisas, mas não faz nada direito — o que tudo bem, porque ela só faz por prazer mesmo. Foi uma criança muito bem-sucedida e espera o mesmo para sua vida adulta: lançou o hit “Quem sabe” e o conto “A ursa bailarina”, grande sucesso entre familiares. Seu lema é “quanto pior, melhor”, frase que até consideraria tatuar se não tivesse dermatite atópica. Brincadeira, ela nunca faria essa tatuagem. Instagram: @ursabailarina