Por aproximadamente 25 séculos (sim, isso tudo), “histeria feminina” foi uma condição médica reconhecida. Essa concepção de histeria englobava vários sintomas e comportamentos de mulheres (uma lista da Inglaterra vitoriana incluía 75 sintomas possíveis, e se dizia incompleta), especialmente os que diziam respeito a ansiedade, pânico, ou a questões de natureza sexual, e sua causa era atribuída a problemas do útero (para ter uma noção da falta de informação sobre o corpo de mulheres cis, durante muito tempo chamavam isso de “útero viajante”, porque acreditavam que o útero estava fora do lugar). Esse diagnóstico era frequentemente utilizado para patologizar reações emocionais legítimas de mulheres (raiva, medo, “desobediência”, reações que eram socialmente indesejáveis em mulheres, que deveriam ser submissas, calmas e pacíficas), e também para desmerecer transtornos reais (como de depressão ou ansiedade), atribuindo-os ao simples “ser mulher”. Como a suposta razão era física, biológica, baseada nos órgãos reprodutivos das mulheres cis, o tratamento prescrito partia da manipulação desses órgãos – o vibrador foi inclusive popularizado como mecanismo para estimular mulheres “histéricas” para tratamento.
Um resultado da patologização de reações emocionais naturais e do desmerecimento de transtornos reais é o que foi chamado pela psicóloga Laurie Layton Schapira, em 1988, de “Complexo de Cassandra”: o sofrimento das mulheres que, desmerecidas em seus sentimentos e atos simplesmente por serem mulheres, e consequentemente percebidas como “irracionais” e “histéricas”, não encontram apoio e são desacreditadas quando contam acontecimentos reais pelos quais passaram, ou sintomas que de fato sentem. É a mesma base social do gaslighting, porque a justificativa para desacreditar em mulheres que falam a verdade é que mulheres são naturalmente “sensíveis”, “emotivas” – como se emoções fossem campo exclusivo feminino, e como se transtornos reais fossem merecedores de destrato por serem sofridos por mulheres, já que “é da nossa natureza”.
É curioso perceber, também, que as mesmas emoções, quando demonstradas por homens, são percebidas de outra forma. Como comportamentos lidos como “histéricos” seriam do âmbito natural das mulheres, quando eles ocorrem em homens eles devem ser legítimos – afinal, não é “natural” deles, então deve haver uma razão real. A partir daí, homens são considerados medidores mais precisos da reação emocional “apropriada” a uma situação, e também têm sintomas de transtornos levados mais a sério.
Da mesma forma, reações emocionais tradicionalmente associadas a homens – raiva, falar alto, agressividade, imposição física, etc. – são consideradas formas “razoáveis” de se reagir, muito mais do que reações emocionais tradicionalmente associadas a mulheres – gritar, chorar, tristeza, medo. Em discussões, homens têm um passe livre para reagir emocionalmente com raiva, por exemplo, mas quando mulheres choram, é “exagero”, é porque são “emotivas”.
Para ilustrar, conto para vocês uma experiência: recentemente, participei de uma mesa sobre feminismo e cultura pop. Na hora das perguntas das pessoas presentes, várias mulheres aproveitaram para comentar situações de machismo que viviam no dia a dia. Uma delas contou a seguinte história: ela estava conversando com um amigo, e eles estavam discordando; ela explicava seu ponto de vista, e o amigo insistentemente a refutava, de forma desagradável e agressiva, até que um outro amigo – homem – se juntou à conversa, falou exatamente o que ela estava falando, e o primeiro amigo concordou com ele. Assim que ela compartilhou esse acontecimento com a sala do debate, várias outras mulheres concordaram, contaram casos parecidos.
Na base disso tudo, está essa tendência a ver em mulheres a irracionalidade emocional que deve ser desconsiderada, e nos homens a racionalidade que faz com que tudo que eles dizem seja mais crível. Resta às mulheres o sofrimento naturalizado, o desprezo a suas emoções, a posição social de fraqueza e instabilidade. Resta às mulheres o rótulo de “histéricas”, o diagnóstico antiquado transformado em naturalidade social.
Sofia tem 25 anos, mora no Rio de Janeiro e se formou em Relações Internacionais. É escritora, revisora e tradutora, construindo passo a passo seu próprio império editorial megalomaníaco. Está convencida de que é uma princesa, se inspira mais do que devia em Gossip Girl, e tem dificuldade para diferenciar ficção e realidade. Tem igual aversão a segredos, frustração, injustiça e injeções. É 50% Lufa-Lufa e 50% Sonserina.
Pingback: Recapitulando: Mar. 2015 | Un long chemin()