Ela é uma menina excluída, pode ser por ser nerd ou só esquisita mesmo, isso varia. O importante é que ela não é aceita, está fora dos padrões de alguma forma e por isso vive na invisibilidade do ambiente escolar, sendo lembrada somente na hora da humilhação, na hora do bullying. Do outro lado temos o menino, ele é o oposto. Ele é considerado muito bonito está dentro dos padrões, é querido por todos ou é algum tipo de atleta ou tem uma banda. Por alguma razão cósmica esses dois se encontram e se apaixonam e no meio de muitas confusões, dramas e lágrimas, eles finalmente ficam juntos e são felizes para sempre. Quantas vezes você já não viu essa história? Eu, pelo menos, acho que tenho uns cinquenta exemplos para dar, de Clube dos cinco (The Breakfast Club, 1985) a Malhação (1995-Atualmente). Eu costumava ver essas histórias e achar tudo lindo, sem nem me importar que estava vendo a mesma linha narrativa pela trigésima vez e ficava sonhando à espera do meu menino popular chegar. Até que em um momento eu pensei: ei, tem alguma coisa errada aí.
Primeiro vamos começar com o fato que todas essas histórias são heteronormativas. Nunca temos a menina popular e a menina excluída ou qualquer outra coisa que explore outras sexualidades. Então entramos na grande questão do estereótipo. Narrativas assim criam padrões a serem seguidos. A “nerd”, o “atleta”, a “menina bonita má”, o “rebelde”, tudo isso são estereótipos que nos colocam em caixinhas nos dando uma lista de comportamentos para seguirmos e nos encaixarmos neles. Quando nós sabemos que os seres humanos são seres complexos e devem fazer o que bem entenderem, não cumprindo um único papel. Não existe essa coisa de perfis fixos que devemos nos enquadrar. Somos muito mais que coisas estáticas. Personagens estereotipados são personagens rasos e vazios. Além disso, a partir do momento que estabelecemos esses esteriótipos também garantimos que uns são melhores que os outros. Porque nessas histórias, sempre a grande surpresa é “oh! Como pode ele se apaixonar por ela??”. Como ele, que está nessa casta superior dos atletas / guitarristas e pessoas bonitas, conseguiu se apaixonar pela menina que está lá embaixo da cadeia alimentar, a menina que ninguém quer? Não, apenas parem, com esse pensamento! Somos pessoas únicas e ninguém é melhor do que ninguém.
Outro ponto que vale falarmos é que nesses filmes, geralmente, vai ter a “menina bonita má” que eu já mencionei. Ela é a menina que o menino bonito deveria estar namorando, se a ordem natural das coisas não tivesse sido interrompida, a que faria sentido, segundo esse mundo de padrões pré-estabelecidos. Ela vai ficar enfurecida por ele ter escolhido namorar outra, supostamente, inferior a ela. Nós, espectadores, passamos a odiá-la. Afinal, a mocinha do filme é a outra. Só que esquecemos que “menina bonita má” também é humana, tem desejos, vontades e inseguranças. Novamente há o problema de personagens estereotipados quando ela é somente a “menina bonita má” sem sentimentos e questões próprias. Ela se torna uma personagem unidimensional e fraca. Além de tudo, essa rivalidade entre garotas só alimenta a rixa entre mulheres e estimula a falta de sororidade, nos colocando como inimigas.
Seguindo essas narrativas também temos um outro ponto comum da história. O momento da transformação. O momento em que os óculos vão virar lentes, as roupas largas vão ficar justas, o momento do close no rosto do menino e ele falar “UAU”. É a famosa cena do filme Ela é demais (She’s All That, 1999) em que Laney (a menina excluída) desce as escadas, toda arrumada. Esse momento é repetido em infinitas outras historias, em diversos outros formatos, mas querendo dizer a mesma coisa. É como se esse cara tivesse achado um “diamante bruto”, que ele vai lapidar para fazer aquela menina ficar exatamente no padrão de beleza das outras que estão na casta superior das pessoas bonitas como ele. É como se toda a beleza padrão já existisse e a menina só precisasse “se cuidar”, “se arrumar”, “das roupas certas”. Porque seria um abuso ela estar junto com ele exatamente do jeito que ela é, de óculos e tudo mais. É como se isso nao fosse o suficiente, ela precisa se enquadrar no padrão, para seguir nesse romance.
Isso me faz lembrar uma outra coisa, uma tecla que eu bato sempre, a tal representatividade. Porque essas meninas nerds e outsiders dos filmes e séries estão sempre no padrão sim. Elas não são gordas, elas não são negras, elas não são trans, elas não têm nenhuma deficiência física ou mental (não vou entrar no fato de elas não serem lésbicas ou bisexuais, porque essas histórias são sempre tão heteronormativas). De forma alguma quero dizer que meninas que não fazem parte dessas “minorias” não sofrem bullying na escola, basta você ser um pouco diferente, se destacar um pouco do comum que no ambiente cruel do colégio isso pode ser um gatilho para humilhações. Agora, vamos ser honestas: quem são as meninas que estão mais vulneráveis? Que já sofrem opressões no mundo, que vão ser mais machucadas na escola? Só que essas meninas não têm espaço no cinema e na tv. As gordas, negras, trans podem ser as esquisitas na vida real, mas na midia elas nem existem. Porque talvez não tenha transformação que faça elas entrarem no padrão? Assumir que elas são lindas do jeito que elas são também não pode de forma alguma, então, que não existam.
Não vou negar que a história do outro lado também acontece, que também tem o menino nerd apaixonado pela menina mais popular da escola, porém, o número ainda é mais significativo para o lado das meninas excluídas. Quantas “make-overs” de homens você já viu nesses filmes? No fim das contas esse tipo de narrativa é só a velha história do príncipe encantado que vai resgatar a donzela, adaptada para os dias atuais. Continuamos sendo indefesas vivendo nesse mundo de opressão esperando o dia que o príncipe vai chegar e nos resgatar dessa vida de sofrimento. Era essa a mensagem que era passada pra mim, nerd e gorda esperando ansiosamente o dia que o meu príncipe iria chegar e me tirar dali. Que alguém fosse me enxergar. Como se eu não fosse suficiente do jeito que eu sou. Não precisamos de resgate, não precisamos de “make-overs” para entrar no padrão de ninguém, não precisamos que os homens nos digam que somos lindas. Somos lindas e poderosas do jeito que quisermos ser, “make-overs” só se for para nós mesmas, nos arrumarmos pra gente. Isso que é apaixonante. Roteiristas, vamos mudar essas histórias, queremos ver muito mais que isso.
Dani Feno, 26 anos. Quando era criança foi ao cinema ver Rei Leão a primeira vez e se apaixonou por essa coisa de ver filmes. Mais velha viu um seriado chamado Clarissa e pronto, a paixão passou para seriados também. Foi tão forte que agora trabalha em uma finalizadora de filmes e programas de TV, mas o que gosta mesmo é de editar vídeos para Capitolina. Gorda e feminista desde criança também (apesar de só saber que é esse o nome há pouco tempo). Acha que a melhor banda do universo é Arcade Fire e pode ficar horas te convencendo disso. Em Hogwarts é 70% Corvinal e 30% Grifinória.
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