Ninguém tem certeza de como o termo “slut shaming” foi criado. Algumas pessoas acreditam que tenha a ver com o discurso do radialista Rush Limbaugh, que chamou de vadia uma estudante de Direito americana defensora de que os planos de saúde incluíssem anticoncepcionais; outras creem que suas origens estão na popularização das “marchas das vadias” (slut-walks), iniciadas no Canadá após um grupo de policiais associar estupros a mulheres se vestindo como “vadias”.
Mas as origens não importam tanto assim quando o problema ainda é tão presente. Embora essas ações não sejam originadas e nem precisem da internet para se propagarem, elas têm nela uma ferramenta extra para ferir e “punir”.
Muita gente já deve ter ouvido falar, mas o que é slut shaming? Bem, sabe quando a turma descobre que aquela colega de sala deu uns beijinhos em mais de um menino na última festa da escola e aí começam a rolar fofoquinhas maldosas, apelidos pouco felizes e dedos apontados na direção da garota? A menina vira a “piriguete”, a “piranha”, a “fácil”, mas, se você reparar, vai perceber que raramente esse tipo de comentário atinge os meninos mais “soltinhos” – chamemos assim. Pelo contrário: o garoto na mesma situação ganha fama de “pegador”, de “bonzão”. Mesmo quando alguém se arrisca a chamá-lo de, digamos, “galinha”, o termo vem mais associado a um problema (quando muito!) no caráter do rapaz do que na maneira como ele expressa sua sexualidade. Nas entrelinhas, fica subentendido que é normal um homem ter desejos e que isso é coisa de uma “natureza masculina” – quando, na realidade, desejo independe de gênero e sua aceitação tem mais a ver com a sociedade ao redor do indivíduo do que com uma verdade inquestionável.
Slut shaming (literalmente, algo como “constranger alguém por ser vadia”) é induzir uma mulher a se sentir moralmente culpada por desejar ou agir de acordo com certas práticas sexuais que não batem com as expectativas de seu gênero. Isso pode ser causado por se vestir de maneira considerada inaceitável, por se envolver com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, por ser sexualmente experiente ou simplesmente por ter desejo sexual.
Mas o slut shaming pode ter muito pouco a ver com sexo, também. Uma pesquisa feita pelas universidades de Michigan e da Califórnia mostrou que, mais do que o comportamento sexual em si, muitas mulheres têm suas atitudes constrangidas por uma questão de pobreza. É aquela velha máxima: se uma pessoa rica faz, é “excêntrico” (e possivelmente empoderador); se é uma pessoa pobre, é “brega” ou simplesmente trashy. Existem muitas camadas nessa história e não é nada incomum que mulheres pratiquem slut shaming contra outras mulheres como uma forma de reafirmação de poder e status. É o machismo com uma face elitista.
Se isso já era um problema antes da popularização dos computadores, na era da internet o slut shaming pode se tornar extremamente perigoso como uma forma de cyberbullying. A nova cara deste constrangimento normalmente vem na forma de fotos e vídeos reveladores que “vazam” para redes sociais e sites pornográficos, quase sempre pelas mãos de alguém em quem a vítima confiava. De vez em quando, esse material é uma fotografia enviada propositalmente para um namorado ou ficante que, irritado depois do fim da relação, decide se vingar humilhando e traindo a confiança da moça em questão (revenge porn ou “pornografia de revanche”). É muito frequente, porém, que a vítima sequer saiba que está sendo filmada ou fotografada: hoje em dia, todo celular tem uma câmera e não é difícil escondê-lo.
O problema maior é que – principalmente quando isso ocorre na adolescência ou em qualquer fase da vida na qual temos pouco poder de escolha e damos muita importância ao grupo onde estamos inseridos –, ser exposta à tamanha humilhação pública pode levar à depressão, ao isolamento e, em alguns casos, até mesmo ao suicídio. Foi assim com Felicia Garcia, de 15 anos, que em 2012 se atirou em frente a um metrô após semanas sendo física e psicologicamente torturada por colegas de classe – principalmente, para adicionar mais asco ao caso, pelos rapazes com quem ela havia transado numa festa. Também em 2012, a canadense Amanda Todd tirava a própria vida após três anos sendo chantageada e exposta de topless em páginas da internet. Mesmo se mudando diversas vezes, Amanda não conseguia escapar do assédio. Ela tinha 12 anos quando foi convencida a mostrar os seios num chat. No Brasil, a jovem Julia Rebeca fez o mesmo quando “vazou” pelo WhatsApp um vídeo em que ela e outra adolescente apareciam transando com um rapaz.
Esses casos são apenas pontas de um iceberg que mostram como o machismo isola, fere e mata, e que é preciso fazer alguma coisa. Um projeto de lei de 2013, proposto pelo deputado federal Romário (ele mesmo, o ex-jogador de futebol!), tem tramitado no Plenário e propõe que vídeos e fotos íntimas expostas na internet sem o consentimento de um dos lados afetados possa ser tipificado como crime. Vale lembrar que, mesmo hoje, dependendo da idade da vítima em questão, os responsáveis pelo vazamento e compartilhamento desse material podem ser punidos por pedofilia ou corrupção de menores.
Sororidade e informação
Agora, vamos ao que importa aqui: sentir tesão não é errado, gostar de alguém não é errado, expressar sua confiança em uma pessoa não é errado. Existe uma relação bem óbvia de um peso e duas medidas que incrimina meninas vítimas de humilhação e eleva ao status de heróis os garotos (ou homens, o que é ainda mais grave) que as humilharam.
Talvez para quem está de fora da situação, pareça uma situação banal: tirar a própria vida porque não aguenta umas “brincadeirinhas”? Mas o que falta a quem tira este tipo de conclusão é uma empatia para perceber que todos nós criamos ficções protetoras para sobreviver aos desafios do dia a dia. Para não pirar, precisamos acreditar piamente que temos o controle sobre nosso destino, que nossos limites sempre serão respeitados, que nossa lealdade será retribuída com gratidão e gentileza e, talvez o mais importante de tudo, que somos, no final do dia, boas pessoas. Viver não é só respirar, comer e beber: viver é também manter uma imagem positiva de si mesma e acreditar que existe um grau mínimo de segurança, amor e aceitação no ambiente em que se está. Quando não encontramos esses elementos, a balança se desequilibra e, sem ajuda externa ou uma força de vontade sobre-humana, algumas pessoas simplesmente… quebram. Por isso, é preciso muito tato e compreensão quando se conhece alguém que esteja passando por essa situação.
É sempre importante lembrar: pelo menos por enquanto, uma vez na internet, sempre na internet. Se você não se sente confortável, não faça. Não caia nessa de “Ah, vai, só umazinha” ou “poxa, mas nós já estamos saindo a [coloque qualquer número aqui] meses, você não confia em mim?”. Não é não, e a única pessoa que tem o direito de decidir quando (ou se) você vai fazer algo deve ser você mesma. Desconfie de insistências e fique atenta: se aquele menino diz que só vai ficar com você depois de ver fotos, provavelmente ele não é alguém com quem você queira ficar mesmo.
(campanha de conscientização americana do “Pense antes de postar”)
Culpa e humilhação matam porque colocam a gente em um labirinto mental do qual parece não haver escapatória. E qualquer pessoa que já esteve numa situação da qual não consegue fugir (que pode ser desde ficar presa num elevador a ter que aturar pais abusivos porque não se tem dinheiro para sair de casa) sabe quão angustiante e desesperadora pode ser a sensação. Se vem acontecendo alguma forma de slut shaming com você, saiba: você não é uma má pessoa por causa disso. Você não merece ser humilhada e chamada de nomes feios por conta de suas escolhas. Às vezes pode parecer que a situação em que estamos nunca vai acabar, mas isso não é verdade: tudo passa, e existem dias melhores que outros.
A internet e as novas tecnologias podem ser positivas também. O app For You é um projeto criado por um grupo de meninas de 16 anos para combater o slut shaming na internet e que participava do Technovation Chalenge. Embora não tenha conseguido vencer o desafio este ano, não há dúvidas do quão relevante pode ser usar aplicativos para informar as pessoas para o combate a esse mal. Pelo app, possíveis vítimas poderiam conversar, procurar se informar sobre medidas legais a serem tomadas ou simplesmente desabafar e encontrar solidariedade.
Portanto, lembre-se disso se você conhece alguém que estiver passando por isso agora. O que parece uma piada inofensiva pode ferir profundamente a autoestima de uma menina como você. Talvez pareça que rir ou apontar para alguém te torne mais forte, mas, no fim das contas, é você mesma – e suas liberdades –, o que você estará atacando.
E, sinceramente? Somos muito mais fortes quando somos juntas.
Vanessa é carioca, mas aos 25 anos sente que o mundo é grande demais para se pertencer a só um lugar. Por isso, passa boa parte do tempo em paisagens imaginárias e planejando suas próximas viagens - que podem ou não acontecer (“As passagens pra Plutão ainda estão disponíveis, moço?”). Gosta de filmes da Disney e de musicais mais do que dizem ser aconselhável para sua idade. Quando não está pseudofilosofando sobre o papel dos videogames na cultura pop, pode ser encontrada debruçada sobre seu laptop, arrancando os cabelos por alguma história que cisma em não querer ser escrita.
Pingback: Meninas, a rua é nossa também! | Capitolina()
Pingback: A fofoca não tem rosto - Capitolina()
Pingback: Glossário de termos do feminismo - Capitolina()
Pingback: Glossário de termos do feminismo | Além da Mídia()
Pingback: Tumblr: O Antitextão - Capitolina()
Pingback: Mesmo na internet, nem tudo é para os olhos dos outros — Capitolina()